O que quer Descartes? Ele o diz: “Começar tudo novamente desde os fundamentos.”
Fundamentos metafísicos obviamente. Algo que soa profundíssimo e desnecessário, segundo o lugar em que cada um se coloque. A Física, a Matemática, a Biologia podem certamente prescindir da Metafísica. A Metafísica não é necessária para se fazer ciência. Descartes seria o primeiro a admiti-lo. Mesmo a Ética pode, por prudência, reduzir-se ao respeito aos usos e costumes – e ainda que se assente melhor sobre a Metafísica, na prática, facilmente se acostuma a viver sem ela.
Enfim, do ponto de vista da ciência, a prova metafisica é irrelevante: a verdade ou a falsidade das proposições cientificas se comprova por seus efeitos. Então por que e para que esse mergulho na escuridão dos fundamentos?
Suspeito que a resposta mais simples seria: porque a vida precisa ser levada a sério. Só a eficiência não basta. É preciso a certeza de que há entre a mente e o mundo uma relação de verdade que torna possível o conhecimento. Um conhecimento que não se reduza a um jogo de coincidências intrigantes ou a um conjunto de símbolos que remeteria a uma verdade oculta, cujas chaves interpretativas estariam de posse de alguma seita e seus gurus de ocasião.
A prova metafísica pretendida por Descartes permite afirmar que o mundo é literalmente um livro aberto, e não o portal de alguma forma de gnose. Por consequência, o conhecimento do mundo está acessível a todos os homens e não apenas a alguns eleitos ou a uma casta superior.
Como nas Matemáticas, que Descartes conhece tão bem, os fundamentos ou princípios metafísicos devem ser simples e auto-evidentes; tautológicos de tão simples, diga-se logo. E devo reconhecê-los presentes tanto em mim, pela via introspectiva que será percorrida por Descartes, como no mundo, pela via contemplativa inaugurada por Aristóteles.
Esses princípios do pensamento e da linguagem são condição de possibilidade deles e, ao mesmo tempo, marcos definitórios dos limites de sua extensão: para além deles, a sintaxe não consegue ir além – ainda. O que está adiante pode ser até concebível, mas não é descritível, ao menos em palavras – ainda. Ali onde a linguagem se esgota, começa a matemática o seu trabalho. Ali onde o idealista enxerga um limite, o realista vê um novo horizonte.
Por outro lado, se a Mathesis Universalis pensada por Descartes fosse de fato a linguagem do mundo sancionada pela prova metafisica da verdade de suas conclusões, a ciência se libertaria da especulação finalista que interroga os desígnios de Deus para a Criação, e poderia se dedicar à atividade muito mais profícua de entender como ela opera. O Deus criador estaria presente no Criação pelo modo como Ele a conserva (e, sim, nesse contexto é possível dizer Deus sive Natura). E a percepção dessas leis da conservação (um outro modo de pensar o princípio de identidade), e o conhecimento delas derivado, seria uma prova da excelência da humanidade: feito à imagem e semelhança de Deus, o homem seria capaz de conhecer a verdade das coisas.
Uma vez postas nesses termos, no entanto, o caráter divino dessas leis pode ser ignorado para se enfatizar seu caráter natural. Nenhum problema: o cientista faz ciência e não teologia. Mas a íntima certeza de que sua mente tem com a natureza uma relação de verdade confere-lhe um vigor intelectual de que não pode prescindir.
Enfim, o mundo, a Criação, estaria ordenada segundo leis acessíveis ao pensamento humano. Isso não é pouca coisa. E, ao contrário do que pensou Kant, abre caminho para fé – que nos alcança pelo maravilhamento que resulta da contemplação da Beleza – esse outro nome da Verdade – do Mundo.
A ordem cósmica seria complexa em sua amplitude e simples na sua estrutura. O Cosmos se ordena em graus, não como hierarquia, mas como um processo dinâmico não-hierárquico, onde tudo está interligado, pois, não há vazio, e as ações se compensam em seus efeitos. Não há fatalismo causal: a Natureza opera sob a lógica da contingência e não sob o jugo da necessidade. Tudo é livre em sua natureza porque tudo é criatura finita e, por isso, contingente. A liberdade se funda na nossa contingência.
Por outro lado, a contingência põe em relevo o papel da vontade – que aqui, neste texto, chamarei de volição, por motivos que logo se esclarecerão. Por isso, o papel central da volição nas Meditações: as Meditações se fundam sobre um ato da volição rebelada contra as razões suficientes apenas ao Esteves sem metafísica.
Mas para recomeçar desde os fundamentos, Descartes precisa destruir tudo. Mas destruir com método. Nós o acompanharemos em sua estratégia. Desceremos com Descartes ao cerne da atividade cognitiva. Ou, num sentido mais amplo, de nossa vida espiritual. Não é pouca coisa. Coisa de quem encara a vida à sério.